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Cleusa Rossetto faz uma autocrítica sobre o processo de produção de sua arte digital: o despertar, a pesquisa e o encantamento.
Tenho a missão de fazer uma autocrítica sobre meu trabalho em arte digital, mas ao mesmo tempo julgo interessante explanar, um pouco, sobre a evolução da metodologia adotada na produção de minhas obras, já que as técnicas disponíveis nesta área podem ser bem diversas.
Também trago à tona as considerações críticas sobre este tipo de arte, já que muitas vezes geram polêmicas.
Na sequência cito a reação de alguns críticos de arte sobre meu trabalho e, posteriormente transpasso o que percebo sobre o resultado obtido de minha produção desde o despertar, a pesquisa e o encantamento.
Como tudo começou?
Do desenho artístico e da pintura tradicionais, depois de muitos anos experimentando e aperfeiçoando várias técnicas, reproduzindo visões de um mundo conhecido, tinha como um dos principais limitantes, no processo criativo até então, a necessidade de um ateliê maior.
À parte disto, em 2008, em uma estância pela Espanha, numa busca frenética por determinado papel a ser utilizado como mídia numa obra, praticamente já optando por materiais alternativos, deparei-me numa das lojas com uma senhora aparentando uns 80 anos de idade a qual, inconformada por não poder me ajudar, disse: “__ Mas minha filha, você não sabe que hoje em dia se faz tudo por computador?”
Isto, para mim, foi um choque! Primeiramente por vir de uma senhora de idade avançada, além disto, por eu atuar há longa data na área acadêmica universitária, respondendo por pesquisas tecnológicas e científicas, tanto na área da engenharia como arquitetura, e já estar familiarizada com os tais computadores, e nunca ter experimentado qualquer ferramenta informática para a produção de uma obra artística.
A partir deste momento assumi como desafio a busca por ferramentas que pudessem ser utilizadas na arte digital.
Técnica adotada na materialização das obras em arte digital
A busca por softwares
Comecei trabalhando com os softwares disponíveis nas famosas “prateleiras de mercado”, mas vi que com estes não conseguiria me diferenciar, então sai em busca de ferramentas alternativas.
Nesta pesquisa me elucidei que muitos pesquisadores científicos e profissionais, fora da área artística, utilizavam softwares especializados e que poderiam servir para algo maior. Entre estes encontrei softwares utilizados em cristalografia; em tratamentos matemáticos; em projetos de arquitetura; em processamento 3D, em renderização, etc. Certamente, um mundo de possibilidades a serem exploradas.
A geração de imagens antes não exploradas
Com o passar do tempo estabeleci uma parceria com um pesquisador, hábil em linguagens informáticas, para que alguns destes softwares levantados recebessem uma “ponte de comunicação” e pudessem “conversar” entre si. Imagine um software de cristalografia fornecendo elementos para um outro com visualização em 3D. Imagine os átomos de carbono, na nuvem de uma determinada estrutura cristalina, sendo substituídos por figuras criadas exclusivamente por equações matemáticas. Imagine imagens criadas matematicamente sendo retrabalhadas e convertidas por outros softwares de manuseio em 3D. Imagine centenas de imagens sendo trabalhadas simultaneamente, alimentadas com tuas texturas e gerando imagens antes não exploradas.
Embutido a tudo isto, certamente poderás imaginar que há uma grande complexidade neste processo de criação.
A infraestrutura do ateliê de artes digitais
Bem, devido à complexidade do processo, além dos softwares, o ateliê ou estúdio para as artes digitais demanda por ferramentas específicas e profissionais com as quais há de se fazer muita inversão. Os principais equipamentos são: computador com processadores e placas gráficas de alta performance, tablet touch profissional e correspondente caneta digital, dispositivos para armazenamento de arquivos com vários terabites, incluindo sistemas de backups avançados, e ainda um monitor profissional de alta resolução calibrado.
Outras demandas para a produção artística digital
Para a produção artística digital, além do “arsenal” tecnológico empregado como ferramentas, igualmente se requer, do artista visual, talento, sensibilidade artística e criatividade, assim como, intercâmbios ou competências de programação, conhecimentos de geometria analítica e outros tantos conhecimentos técnicos.
Portanto, com a harmonização destes fatores é possível produzir cenários magníficos e surpreendentes, e também vislumbrar novos personagens, objetos, etc. As opções são imensas! Mas, acima de tudo, para se conseguir uma coleção de imagens se faz necessário muito estudo, planejamento, horas e mais horas de pesquisa e trabalho. Neste processo, muitas imagens ou capas são estrategicamente filtradas ou modificadas, até que se consiga o conteúdo ou resultado pretendido. Também podem ocorrer alguns resultados não aproveitáveis.
Finalmente, uma vez selecionadas as imagens com potencial para um projeto em específico, passa-se para a fase de finalização. Ou seja, quando então as imagens serão tratadas com maior rigor artístico e estético.
Diferenciais e materialização da arte digital
As obras, então criadas no computador, em formato digital, poderão ser materializadas ou impressas, geralmente através de empresas especializadas neste tipo de serviço, utilizando para tal equipamentos e técnicas diversas.
As impressões podem ser do tipo direta ou por sublimação e nas mídias dos mais diversos materiais: telas, diversos tipos de papéis e tecidos, vidros, acrílico cristal, melamínicos, pvc, aço, cobre, alumínio, madeira, cerâmica, peles, etc. Tudo com a personalização das dimensões, recortes, cores e acabamentos tornando-se um grande diferencial nos resultados, de acordo ao projeto pretendido. Algumas das mídias até permitem uma intervenção final do artista.
Quando se faz uma impressão fine art, por exemplo, utilizam-se materiais de qualidade museológica e pigmentos minerais de última geração, sendo possível garantir a fidelidade das cores por muitas dezenas de anos. Neste tipo de impressão, geralmente se empregam impressoras profissionais, que levam um maior número de cartuchos de pigmentos e que garantem uma gama de cores diferenciadas. Também permitem maior resolução na impressão e trabalham sempre calibradas, visando a melhor qualidade da obra.
O trabalho no computador permite a produção de imagens com grande precisão e riqueza nos detalhes, muitas vezes impossíveis de serem obtidas manualmente. Além de que, o projeto poderá ser desenvolvido com maior produtividade e, num ateliê ou estúdio de menores dimensões.
Quais as opiniões criticas sobre a arte contemporânea e digital?
Consideremos que vivemos num mundo de transformações aceleradas, tudo levando tecnologias e geralmente interconectadas, e que a arte não poderia estar alienada a este contexto.
Consideremos que, numa atitude metalinguística, acompanhando o arsenal imagético atual, as novas tipologias estéticas somente serão possíveis através do mix de tecnologias ora disponíveis.
Discursos com abordagens diversas sobre os temas
Visando ampliar o repertório e num reforço de lógica repasso, a seguir, discursos diversos que tratam da arte contemporânea e da arte digital.
Segundo Leandro Karnal, no vídeo “Arte Contemporânea: Para quem ama e para quem detesta”, “não se pode deixar de considerar que a Arte Contemporânea abriga elementos que demonstram a capacidade de criação do ser humano para além da sua mesmice.”
Seguindo a esta citação, serão desdobradas as principais argumentações a respeito da arte contemporânea e digital que ora permeiam o mundo das artes.
Funções da arte; o sistema de mercado; artistas novos emergentes; arte do passado ou arte contemporânea?
O crítico Leonel Moura em seu texto “Arte Contemporânea / Arte sem Arte”, lembra as ocorrências típicas das décadas de 60/80 apontando as funções das arte. No inicio com uma função subversiva, iconoclasta e política. No final, assim como para as mais recentes, traz a questão “do complexo sistema de mercado manipulado, de gosto sobrevalorizado (o fácil, o Kitsch e o anódico), com a lógica da repetição, profusão de derivados com a manipulação, esperta e gratuita, do já feito noutra época.” Leonel é bastante crítico quanto aos artistas que se apelidam novos e emergentes, pois, para ele, “na maioria, são meros copistas dos consagrados, ou seja, daqueles que já foram legitimados.”
Continuando sua explanação “a arte contemporânea pode ser considerada a arte do passado, pois, a arte de hoje, realmente contemporânea realiza-se numa intensa interação com a ciência e as novas tecnologias acumulando uma inteligência e também criatividade próprias, tidas como verdadeiras parceiras dos humanos.” “Com o advento dos algorítimos, já na década de 70, sugiram obras pioneiras que abriram um novo campo de realização da arte.”
Arte Digital: A arte que faz a diferença
Aqui faço meu aparte, pois, somente quem já trabalhou com os dois lados (tradicional e digital) pode dizer o quanto a ciência recente e as novas tecnologias podem mudar radicalmente a forma de como vemos o mundo e os seus mecanismos. Leonel também reforça isto quando cita “pois ao se apropriar do conhecimento científico, para gerar novas formas de criatividade, a técnica passa a ser mais construtivista, positiva e visionária, animada pelo desejo de construir um mundo novo.” “A Arte que faz a diferença.”
Mas será que o mundo das artes aceita, ou está preparado, para este tipo de arte?
A desconfiança, o preconceito e a resistência à arte digital
Alguns artistas vêm a arte tecnológica com desconfiança, porém, para o crítico Oscar de Ambrósio, “a Arte Digital é um universo à parte. Você trabalha com ferramentas ou softwares que lhe permitem milhões de possibilidades e a decisão é sua, em aceitar ou rejeitar cada uma, visando atingir ao seu projeto de arte. Tal tipo de arte deve ser avaliada por pessoas que tenham esse conhecimento, pois há muitas com preconceito e resistência em relação à Arte Digital. Ser contra ela é o mesmo erro que afirmar que a pintura acabou. Também entra a questão entre o fazer ou o mandar fazer, ao imprimir a imagem criada digitalmente, porém, na escultura tem muito disso.” “A arte digital não sai automaticamente, é algo que vai surgindo a partir do que você alimenta. É o resultado de um processo.”
Quais as opiniões críticas sobre minha arte digital?
A arte deve provocar reações, sejam positivas ou negativas, e no meu caso parece que consigo impressões positivas, pois as criticas a seguir demonstraram isto.
Dos fios de Ariadna, geometria e gestos que se dão a mão
A crítica espanhola Julia Sáez-Angulo, que também é jornalista e escritora de novelas e poesias, postou “Muitas de suas obras se parecem como verdadeiras instalações têxteis, murais ou de teto, a partir de um fio de Ariadna imaginário, que se prolonga até o imaginável: o “Eureka” do assombro. Suas peças, como os antigos rascunhos dos cartões para tapeçaria, repito, são susceptíveis de serem levados à terceira dimensão.”
“Cleusa Rossetto domina o espaço e a forma na hora de trabalhar, desenhar e compor suas obras pictóricas digitais no computador. Sabe atrair o olhar e oferecer uma sorte de rítmicos enganosos ao observador até a um caleidoscópio infinito. Há muita geometria nesta obra –nela late a sabedoria arquitetônica da autora-, porém também arte figurativa mais acadêmica, entre o que destacaria a série floral “sui generis”, onde a cor desafia a própria natureza, se bem a base segue sendo a geometria infinita. A arquiteta e professora Rossetto trabalha boa parte de sua obra com fórmulas matemáticas, sem que por isto resulte uma arte fria nem congelada. A autora sabe dosificar e compensar com a cor. Geometria e gesto se dão a mão do mesmo modo que o apolíneo se ajusta com toques dionisíacos.”
Das realidades paralelas e mundos potencialmente vindouros
“É a busca do novo, por um lado, e a perfeição por outro.” A historiadora espanhola Diana Martinez Castro fez a citação, “A Arte Digital da brasileira é quase em sua totalidade abstrata. Faz uma abstração futurista e progressiva, integrando ocasionalmente elementos figurativos de acordo com um entorno onírico e irreal. Suas composições são muito dinâmicas e representam objetos que poderiam existir em hipotéticas realidades paralelas a nossa existência e nos apresenta recorrendo a desconstruções óticas combinando diferentes perspectivas geométricas, introduzindo-nos em um universo de alucinações, estimulando nosso córtex cerebral até alcançar uma experiência quase fosfenica.”
“Em conclusão, a obra de Cleusa Rossetto nos traz ao presente o imaginário de mundos potencialmente vindouros ou alternativos, nos introduz em seus labirintos, nos cativa, nos estimula a curiosidade pelo método empregado, por saber onde está a fronteira entre o real e o imaginário, nos faz vibrar até quase alterar nosso sentido límbico, e sobretudo nos induz a experimentar sensações diferentes.”
Como percebo o resultado de minha produção?
O refrão – A existência do amanhã
Já ouvi isto, “A arte é mais que um ofício, é um ato intelectual, uma escrita da consciência. Uma linguagem avançada que sensibiliza, conscientiza, permite uma análise existencial sobre os vários momentos no mundo, inclusive numa tentativa de projeção futura para a existência do amanhã.”
A existência do amanhã – É este o refrão que realmente me move, pois, admiro a ousadia e a criatividade de todos que trabalham com a ficção científica. Como sabemos, muito do já mostrado em filmes, sejam fatos, objetos ou até mesmo a descoberta de constelações, planetas, e outros, tornaram-se realidade para nós. Um salto da ficção para a realidade!
Mas como podemos ter tal vislumbre acerca de uma obra de arte?
O sentido da arte é que nos confronta com o sentido
Traçando um paralelo com os pensadores modernos, sobre as novas formas de ver o mundo, cito o livro “Por quê o mundo não existe” de Markus Gabriel, que adentra na corrente filosófica do novo realismo, e que muito me inspira.
Segundo Markus “O sentido da arte é que nos confronta com o sentido. O sentido busca objetos, que geralmente estariam ocultos, resultando em interpretações distintas. A arte nos surpreende com um novo sentido e ilumina os objetos desde uma perspectiva não comum. Na interpretação da Arte Moderna se faz necessário uma combinação de conhecimentos sobre: história da arte, imaginação criativa e receptividade, para novas interpretações. Pode-se, implementar aqui, que necessitamos, além da ontologia, de outras ciências, a experiência, nossos sentidos, a linguagem e o pensamento, ou seja, a realidade da cognição humana.”
“A liberdade da compreensão das obras de arte consiste em que entendamos algo e ao mesmo tempo experimentamos como a entendemos. O universo não cobra a questão do sentido, é a pessoa, ou seus feitos, que o faz. O ser humano é uma criatividade viva. A criatividade, a imaginação e a originalidade são sinais da sua personalidade.”
Para Markus “Campos de sentido = lugar onde aparece algo. A pergunta que se faz não é a de se existe tal coisa, mas sim, onde ou não esta existe, porque tudo o que existe, existe em alguma parte, ainda que seja em nossa imaginação.”
“Alguns padrões significativos podem ser traduzidos e interpretados de diversas formas, de acordo às emoções, experiências, memórias e imaginação do receptor no momento da observação desta. Assim que, um ser inteligente pode traduzir as imagens ambíguas questionando a percepção da realidade.”
A matemática, a experimentação, a construção do futuro, o autoconhecimento e o encantamento
O Universo ou o Mundo são dominados pela matemática e trabalhando-se com esta é possível extrair imagens tão diferenciadas, que ao serem decifradas, de acordo aos meus campos de sentido, estas produzem uma dinâmica de pensamentos, sensações e encantamentos.
Tomo a vida como passageira, mas sabendo que com todo o “arsenal tecnológico” disponível para o trabalho, é possível vislumbrar, em minhas obras, as “maravilhas” das quais talvez não venha a conhecer no futuro, vejo favorecido as mais variadas hipóteses de experimentação. Experimentação esta, que abre e enriquece meus campos de sentido e contribuem no meu autoconhecimento e crescimento profissional.
Convém complementar aqui, que ao conseguir conciliar minha vertente artística com a tecnologia foi possível uma abstração matemática espacial diferenciada, acrescida de efeitos cromáticos de impacto e outras tantas possibilidades. Com isto houve uma total renovação de meu design pictórico e visual.
Um encantamento! Não só pelas possibilidades da exploração da tecnologia, na obtenção dos cenários magníficos, na antecipação de novos mundos em minha existência, e outros, mas sobretudo, sabendo que a geometria do universo nada mais é que a linguagem da criação e do desenvolvimento da nossa espécie.
Atividades Artísticas, de Curadoria e Educação da autora.
Além de artista visual, e mais recentemente em arte digital, desde 2009, Cleusa Rossetto também atuou como curadora e artista-educadora, por 10 edições, das exposições anuais do Espaço Cultural Tecnologia e Arte da Fatec-SP.
Já participou de mais de uma centena de exposições, nacionais e internacionais (Áustria, Brasil, Bruxelas, Espanha, Estados Unidos, França, Genebra, Suécia e Taiwan), tendo sido agraciada com vários prêmios.
É filiada à AUTVIS – Associação Brasileira dos Direitos de Autores Visuais e membro da Associação MAV – Mujeres en las Artes Visuales, e do Grupo PAC – pro Arte y Cultura, ambos da Espanha. Em 2019 foi nomeada pelo PAC como Delegada por São Paulo/Brasil.
Suas obras encontram-se em vários museus e coleções privadas da Europa e América.
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